Edição 366 | 20 Junho 2011

Carlos Roberto Velho Cirne-Lima

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Márcia Junges


Um filósofo executivo
Quando fui fazer o doutorado em Viena, já laico, Heintel perguntou-me que outra profissão eu tinha. Respondi que queria ser professor de Filosofia. Ele insistiu: “Com o que você ganha dinheiro? Professor não é emprego, não é profissão. Você precisa ter uma profissão; caso contrário, não irei orientá-lo”. Ele falou-me sobre vários dos filósofos do departamento que tinham outras profissões paralelas. Então, mandou-me arranjar um emprego e só depois procurá-lo para o doutorado. Procurei o aconselhamento na universidade de Viena e pedi que me ajudassem a encontrar algo com o que pudesse ganhar dinheiro o quanto antes. Aproveitei os créditos que já tinha cursado e, em um ano e meio, concluí o curso de Administração de Empresas. Assim, sou graduado nessa profissão pela Universidade de Viena. Então, fui procurar Heintel para fazer o doutorado.
No Brasil, quando revalidei o diploma em Filosofia, pensei em revalidar o de Administração também, por via das dúvidas. Foi justamente o que me salvou na época da cassação. Meu diploma de administrador foi validado na UFRGS e tenho registro de número 42 no Conselho Regional de Administração – CRA.
Quando vem a cassação e sou proibido de lecionar, pego meu currículum vitae, tiro a formação filosófica e apresento-o como administrador para possíveis empregadores. Em dezembro de 1969 torno-me funcionário do Banco Nacional do Comércio como escriturário no Departamento de Operações de Crédito Anormal – Deoca. Nesse departamento, o chefe precisa de novos colaboradores. Como eu sabia idiomas e contabilidade, fui contratado. Ninguém sabia que eu era filósofo, pois a pior coisa na época era ser filósofo, e sobretudo cassado.

Administrando a Borregaard
Um ano e meio depois, começa meu ano de peregrinações. Como tive sucesso no Deoca, a diretoria do banco enviou-me como representante dos bancos do Rio Grande do Sul para ser diretor do Dominium Café Solúvel, em São Paulo, na Avenida Interlagos. Era uma empresa que enfrentava problemas com intervenção federal, inclusive. O Banco Central colocou como interventor um senhor de nome Barbosa. Outro diretor, chamado Alvarez, era representante do Bradesco. Os três Bancos do Rio Grande do Sul (Sulbanco, Banco do Comércio e Banrisul) indicaram a mim como representante deles na Dominium. Assim, fiquei diretor dessa empresa por um ano em meio. Ainda como funcionário, começam as negociações para trabalhar na Borregaard, pois o governo em 1972 inicia a desapropriação dessa empresa. O ministro do Planejamento, Reis Veloso, ficou impressionado com o trabalho que eu tinha feito no Banco e na Dominium. Junto do ministro Delfim Neto, ficou meu amigo e apreciou o trabalho que havia feito. Então, ambos pediram-me para entrar em contato com a Borregaard, cuja fábrica brasileira situava-se em Guaíba, aqui no Rio Grande do Sul. Contudo, antes de entrar para essa empresa, passei todo o ano de 1973 numa missão ainda mais espinhosa: salvar e reestruturar o Diners Club do Brasil. O Diners era o grande cartão de crédito da época. Então, saí da Dominium, fui para o Rio de Janeiro e atuei nessa empreitada. Termino o trabalho e assumo na Borregaard em janeiro de 1974. Após estudar o caso da empresa por um mês, vejo que o grande problema era que os noruegueses, seus donos, quando projetaram a planta fabril, fizeram algo muito engenhoso, mas meio perverso. A fábrica de celulose no Brasil usava de árvores e solo baratos, e a celulose era produzida não branqueada e, principalmente, não peneirada. Os fardos de celulose que saíam de Guaíba, se fossem vendidos em outro lugar do mundo, quebrariam as máquinas ao serem processados. Isso porque esses equipamentos são compostos por rolos, que não resistiriam aos fardos repletos de nós. Então, esses fardos deveriam ser peneirados antes de serem prensados. Entretanto, apenas na Noruega é que ocorria a peneiragem e o branqueamento. Assim, metade da fábrica estava situada no Brasil, e a outra na Noruega. O produto daqui só poderia ser vendido na Noruega em função de questões técnicas. Reis Veloso se dá conta disso e convoca-me para mudar a situação. Primeiramente tive que fazer um contrato com os noruegueses para que eles branqueassem a celulose. Como estavam amargurados com esses dois ministros, eu servia de intermediário entre o governo e a Borregaard no Brasil e na Europa. Passado um tempo, começamos a branquear e peneirar a celulose aqui e vender em Amsterdam. Meu escritório funcionava em Frankfurt. Nesse período de 1974-1977, sou diretor da Borregaard em Guaíba, com casa nessa cidade e em Frankfurt, onde a Maria ficava a maior parte do tempo. Aliás, todo nosso casamento foi marcado por constantes viagens e mudanças, e muito companheirismo nessas situações de deslocamento. Nossa vida sempre foi bem atribulada. Quando acabei minha tarefa na Borregaard, o pessoal ficou bastante bravo comigo porque contrariei uma porção de coisas. A defesa que poderiam ter feito para mim deveria partir de Reis Veloso e Delfim, mas que a essas alturas já não tinham mais muita expressão política. Então, fico desempregado outra vez. De 1977 a 1979, o senador Severo Gomes convidou-me para ser diretor na Tecelagem Paraíba, no Nordeste. Então, mudamo-nos para Olinda-PE.

Retorno à UFRGS
Em 1979 vem a Lei da Anistia e recebo uma carta do reitor da UFRGS. Recebo a permissão para voltar e redijo uma carta aceitando o convite. De 1979 a 1983, como eu não tinha dedicação exclusiva à universidade e ganhava pouco dinheiro, empreguei-me numa companhia de seguros que depois foi engolida por uma grande companhia paulista. Assim, mantive paralelos a docência e o trabalho nessa empresa. Estava contratado como professor assistente e adjunto na UFRGS. Em 1985 faço concurso para professor titular e dedico-me exclusivamente à universidade. Aposento-me em 1990 na UFRGS e inicio carreira na PUCRS. Em 2000 encerro a carreira nesta universidade e começo na Unisinos, diariamente, até 2007. Em 2008, sou nomeado professor emérito e professor visitante dessa instituição. Agora estou aposentado. Também tive um período como professor em Kassel, dei conferências em Aachen e Praga.

Reconhecimento filosófico
O reconhecimento ao meu trabalho filosófico veio agora, na velhice. No início da minha carreira sou apenas um professor talentoso. Depois, sou cassado e ninguém pode nem falar a respeito da minha trajetória filosófica. Por dez anos dedico-me a administrar empresas e construo fama de bom executivo. Quando volto à Filosofia oficialmente, estou quase na estaca zero. Na UFRGS, inclusive, não me consideravam filósofo, mas um cassado anistiado. Quando entro na PUCRS, convidado por Jayme Paviani , é que vem o reconhecimento. Na época em que entrei na PUCRS o curso não era bem visto, e era preciso uma revitalização em sua pós-graduação, missão para a qual foram chamados Hans Georg-Flickinger , Ernildo Stein e eu. Depois, a Unisinos chamou-me para fundar o curso de pós-graduação em Filosofia. Ocorre que lá em 1952 eu dava aulas por um semestre em São Leopoldo, no Cristo Rei, migrando da Filosofia para a Teologia. Nessa época a Unisinos fundou no papel uma faculdade de Filosofia e como não tinha quase nenhum professor doutor, colocaram-me como um dos fundadores do curso de graduação. Então, sou um dos fundadores da graduação e da pós-graduação em Filosofia da Unisinos.

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