Edição | 30 Setembro 2025

Editorial - Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

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Em 20 de setembro passado completaram-se 190 anos do início da Guerra dos Farrapos, também conhecida por Revolução Farroupilha. O episódio que está na gênese do que se tornaria o imaginário hegemônico em torno do “gaúcho”, sobretudo associado a uma visão romântica construída pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG, mais ou menos um século depois do fim do conflito entre os dissidentes sulistas e as tropas imperiais. As contradições mais evidentes desta história são conhecidas, como, por exemplo, o Massacre dos Porongos. Mas há um outro Rio Grande do Sul, que é bastante mais diverso e rico, manifesto na produção literária gaúcha – ficcional, jornalística e documental – que traz novos contornos à história do Estado, o que inclui, por exemplo, um grupo abolicionista de meados do século XIX.

A imagem monolítica do Rio Grande do Sul como um estado constituído por um simbolismo, via de regra, associado a valores da classe média branca, bélica e heteronormativa é apenas uma faceta de um estado radicalmente complexo. É nesse sentido que a vertigem do caleidoscópio parece ser mais fiel à realidade.

É desta perspectiva que surge esta edição da Revista IHU On-Line, que tem como referência a obra História da Literatura no Rio Grande do Sul, publicada sem seis volumes e organizada por Luís Augusto Fischer, dividida em cinco tomos e que conta com a participação de mais de 70 autores e autoras. “Concebemos cinco volumes repartidos pela cronologia – e sem usar neles como régua os movimentos, escolas, estilos de época forjados na Europa e tantas vezes repetidos acriticamente no Brasil – e um sexto volume que se organiza por temas transversais, como a literatura produzida por mulheres, a literatura produzida por teuto, afro e italodescendentes, a literatura produzida por judeus, a literatura do mundo LGBT e um longo etcétera, tornando esse volume um projeto de história por fatias, por grupos, por temas relevantes”, explica.

A imagem radicalmente heteronormativa do gaúcho é colocada em causa quando olhamos para a história da literatura no RS. “O homoerotismo foi tema na literatura sul rio-grandense desde o século XIX. Muitos acreditem que é um fenômeno atual, o que não se sustenta. O que muda é a forma com a qual o conteúdo é abordado, geralmente em consonância com a leitura majoritária da época, portanto, antes, correlacionado ao pecado, ao vício, à perversão, à doença e ao desvio psicológico – com raras exceções”, descreve Jandiro Koch, escritor e historiador dedicado ao tema.

Sergius Gonzaga, aborda a obra e a vida de Erico Verissimo, um escritor incontornável para compreender o Rio Grande do Sul. Além disso, a posição política de Erico é retratada de forma singular. “Ele [Erico] se definiu, então, como liberal humanista. Qual é o limite do liberal? Como o liberal defende as liberdades, ele pode defender os direitos humanos, a democracia obrigatoriamente. O liberal tem que ser democrata, está dentro da concepção. Mas nem sempre as ideias dos liberais, junto às suas justas crenças na liberdade e na democracia, são acompanhadas por aquilo que é indispensável a qualquer visão política de mundo. Isto é, a compaixão pelos desfavorecidos e pelos que não são abonados”, explica Gonzaga.

Eliana Pritsch discute como Sepé Tiaraju está na raiz de um imaginário e da história do Rio Grande do Sul. “Creio que história e lenda têm como princípio comum a narratividade. E essas narrativas se somam, se complementam, se contrapõem na construção da imagem de Sepé, fazendo com que justamente sejam construções multifacetadas”, propõe a entrevistada.

A tradição bélica como um aspecto cultural muito associado a uma imagem tradicional do gaúcho passou a ser objeto de crítica na literatura de Alcides Maya, que inaugura o romance social no contexto regional. Esse é o tema da entrevista da pesquisadora Luciana Murari, explicando que “A pobreza e a paralisia das forças produtivas eram a mais perfeita ilustração do quanto a pacificação do estado – em um contexto em que persistiam os embates políticos entre Republicanos e Maragatos – era fundamental para que a marginalização social, as precárias condições de vida e a falta de perspectiva entre os jovens pudessem ser em algum momento enfrentadas”.

Os anos de chumbo da ditadura militar também foram retratados na imprensa e literatura gaúchas dos anos 1960 e 1970, tal como descreve o pesquisador Lizandro Calegari. “. “De Caio Fernando Abreu (1948-1996), podemos citar O ovo apunhalado, de 1975, Pedras de Calcutá, de 1977, e Morangos mofados, de 1982. Trata-se de um autor central cujos textos ajudam a pensar não só a ditadura, mas também os movimentos de contracultura no país. Na minha opinião, é o que melhor se tem em termos de contística no RS e no Brasil. Moacyr Scliar (1937-2011), por sua vez, envereda para a literatura fantástica, para situações surreais, para o insólito, tematizando muito dilemas envolvendo personagens judeus”, pontua.

Nem só de fandango (baile típico gaúcho) é formada a cultura do RS, muito antes pelo contrário, afinal a primeira escola de samba do estado é mais antiga que o primeiro CTG. “Eu vi há poucos dias, nas redes sociais, rapidamente uma notícia de que um parlamentar da extrema-direita estaria propondo retirar recursos do carnaval de escolas de samba, alegando que não são manifestações gaúchas. Isto é uma bobagem imensa. As escolas de samba (...) existem no nosso Estado desde 1940, há muito tempo, então são absolutamente parte da nossa cultura, como são os CTGs e outras tantas manifestações. Portanto, o carnaval e o samba são símbolos também da cultura do Rio Grande do Sul e não dá para separar isso, não dá para dissociar daquilo que nós somos”, descreve o pesquisador Jackson Raymundo.

A todos os leitores e leitoras, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU deseja uma excelente semana e uma leitura prazerosa desta edição!

Imagem da capa: Eduardo Amorim/ Flickr-CC

 

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