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Em sua escuta na clínica psicanalítica, Sigmund Freud tinha acesso a um observatório privilegiado não apenas para estudar a psique humana, mas também para refletir acerca da “formação subjetiva do poder naquele momento de crise do mundo liberal clássico”, argumenta o psicanalista político Tales Ab’saber. Olhando para os fenômenos sociais em curso, quando escreve Psicologia de massas e análise do eu, em 1921, Freud analisava os construtos psíquicos que reverberavam em comportamentos subjetivos e também sociais, como a adesão a líderes fascistas como Hitler e Mussolini, cujo poder de hipnotismo irracional segue reverberando em pleno século XXI na personificação de presidentes como Bolsonaro, Trump e Orbán. Para que a experiência de conversão à liderança de figuras históricas nas décadas de 1930 e 1940 funcionasse, assim como em nosso tempo continue a operar com sucesso, uma tríade de elementos é crucial: mentes vazias de pensamento crítico, abandono da autonomia e abandono da razão. Em seu lugar, o superego do líder autoritário lança suas raízes e se vale do uso do ódio como categoria política, “veneno automático e infinito” do qual Freud estava muitíssimo consciente. “O fascismo operacionaliza esse uso do ódio de forma muito eficaz, a qualquer momento evocando esse arcaísmo para a produção de poder, ainda mais quando o capitalismo mantém a competitividade, a lógica do desprezo social da sociedade de classes, os átomos do ódio em movimento, como se eles tivessem sido pacificados, só que não o foram”, pondera Ab’saber.
Em um mundo cada vez mais mediado por telas e algoritmos, a violência e o ódio deixaram de ser apenas físicos ou visíveis: se tornaram também digitais, simbólicos e cotidianos. O ambiente virtual, que poderia ser espaço de liberdade, criatividade e diálogo, tornou-se, muitas vezes, um território hostil, mas principalmente para os que estão nesse ambiente de forma mais assídua, os jovens. É neste cenário que atua a socióloga e professora Elisa García Mingo, coordenadora do Projeto Divisar, iniciativa espanhola que une ciência, imaginação e ação para enfrentar as novas formas de violência na sociedade digital. A pesquisadora alerta: “A transformação precisa ocorrer não apenas nas famílias, governos ou instituições educativas, mas também nas empresas de tecnologia. Precisamos pressionar as plataformas e redes sociais que lucram com a cultura do ódio, da misoginia, da violência e da humilhação”.
Rose Gurski, psicanalista e doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), docente no PPG Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP), reflete sobre as causas por trás do desejo de fascismo entre os jovens à luz da relação entre psicanálise, educação e política. Em sua análise, o discurso autoritário se espalha como afeto, não como argumento. “É o que Victor Klemperer, no livro A linguagem do Terceiro Reich, já havia observado no nazismo: o empobrecimento da linguagem é também o empobrecimento da experiência. Nas redes, essa lógica se intensifica, instaurando o totalitarismo do pensamento – uma linguagem automática que cria impasses para o surgimento do novo. Assim, os jovens passam a reconhecer-se em comunidades nas quais o ódio e o ressentimento garantem a ilusão de pertencimento”.
O ser humano, único ente capaz de cultivar o ódio e com ele gozar, vem potencializando essa categoria através das redes sociais, cuja arquitetura favorece a extrema-direita. Sabemos que os algoritmos não caem do céu, mas são desenhados, constata o cientista político Thomás Zicman de Barros, professor e pesquisador associado ao Centro de Pesquisas Políticas da Sciences Po Paris: “No Vale do Silício existe até a profissão de ‘arquiteto de mídias sociais’. O ambiente foi feito para valorizar o ressentimento e o discurso do ódio, que deixam as pessoas vidradas na telinha do celular, trabalhando de graça para as Big Techs”.
No contexto da algoritimização da vida, o filósofo Sandro Luiz Bazzanella, professor na Universidade do Contestado (UnC), em Canoinhas, Santa Catarina, reflete que há uma proliferação de discursos mentirosos (fake news), de ódio, de ascendência autoritária, de narrativas simplistas, de impulsionamento algorítmico de ideias e discursos preconceituosos, bem como de incitação à violência e destruição dos laços comuns de convivência. Isso reivindica que tracemos outras experiências de “habitar coletivamente o mundo”.
Na compreensão do historiador Adriano de Freixo, docente na Universidade Federal Fluminense (UFF), no antissemitismo contemporâneo o ódio aos judeus ganha um novo elemento: “a ideia da ‘raça semita’ como uma ‘raça inferior’, ‘degenerada’. Os judeus se tornam os personagens centrais de inúmeras teorias da conspiração que circulavam na Europa e chegam nas Américas na passagem do século XIX. É esse antissemitismo que se consolida na primeira metade do século XX e que teve sua expressão mais extremada e bárbara no nazismo”. O jornalista e publicitário Sergio Schargel, que concedeu entrevista em dupla com Adriano, faz a ressalva de que “a ideia de ‘semita’ para classificar os judeus já é, por si só, uma distorção. Isso faz, inclusive, com que algumas pessoas generalizem o antissemitismo como ódio tanto aos judeus quanto aos árabes”.
José Cláudio Alves, docente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), analisa o ódio constitutivo que os moradores dos Complexos do Alemão e da Penha relatam em referência ao massacre no Rio de Janeiro em outubro deste ano: “um ódio de uma organização de segurança pública que foi construída para ser isso que é desde a ditadura militar. Mas agora é como se tivessem soltado todos os ódios que alimentaram ao longo desse período todo. Esse ódio é cultivado diariamente, por meio de operações menores. Na prática, as tropas da polícia são treinadas diariamente em pequenos eventos constantes de morte, de ódio e de segregação de populações pobres. Essa é a função desses cães de guerra. Eles são treinados para isso”.
José de Souza Martins, sociólogo, é categórico: “A polarização política no Brasil bolsonarista foi induzida pela produção intencional do ódio ao diferente, através das ‘fake news’, reconfigurado como o polarmente oposto. Nomes, identidades, perfis foram satanizados com atributos alarmantes e descabidos de grande significado nas condenações morais da cultura popular”.
Argus Romero Abreu de Morais, professor visitante na Faculdade de Artes, Letras e Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (FAALC/UFMS), pondera que, se por um lado a desinformação funciona como uma máquina do ódio, por outro o ressentimento e sua relação com o desejo de vingança nos ajudam a pensarmos o cenário atual, “especialmente quando discursos políticos procuram canalizar as frustrações sociais complexas para o ataque e o ódio a grupos marginalizados”.
Para o filósofo italiano Sandro Chignola, docente na Università degli Studi di Padova (UNIPD), guardados os contextos diferentes, o fascismo de hoje tem no ódio à esquerda apenas uma “evocação retórica”, pois se for possível fazer negócios, acordos são possíveis. “Devemos partir do pressuposto de que o fascismo não é um arquétipo, uma constante trans-histórica cujas características definidoras podem ser analisadas de uma vez por todas, mas o fascismo, particularmente o do século XX, é um protótipo, um modelo ou um tipo de intervenção na crise econômica e na ruptura dos mecanismos de acumulação do capital, destinado a ser desenvolvido em novas direções e em relação a finalidades diferentes”, elucida.
A todos os leitores e leitoras, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU deseja uma excelente semana e uma leitura prazerosa desta edição!
